Sapatilhas de pontas
Não há blogue de professora de ballet sem um artigo sobre as mais admiradas e respeitadas sapatilhas do mundo. No seguimento do artigo deixo-vos um resumo da História sobre as primeiras sapatilhas e de como as bailarinas e sapatilhas evoluiram a par, sendo que, desde sempre, houve a procura pela sapatilha perfeita, aquela que faria o trabalho da bailarina virtuoso e melhorasse o seu desempenho dramático. Aqui fica um video sobre a importância do ajuste perfeito.
NYCB - Pointe shoe: the importance of the perfect fit
Marie Taglioni obtém frequentemente o crédito e a responsabilidade por ter sido a primeira a dançar com sapatilhas de pontas. Mas ninguém realmente sabe com certeza. Está estabelecido que em 1832 Marie Taglioni dançou o bailado La Sylphide inteiro com as pontas. Mas certamente que existiram dançarinos antes dela que dançaram sobre as pontas dos seus dedos dos pés. É até possível que Marie Anne Camargo tenha feito isso cem anos antes. Existem referências em contas de jornal de várias bailarinas com "dedos do pé fantásticos" ou de "caindo dos seus dedos". É provável que Taglioni tenha dançado nas pontas antes de La Sylphide. Mas quem quer que seja realmente a primeira, foi Taglioni que abriu caminho para o desenvolvimento e a revolução da técnica do ballet. Transformou os dedos dos pés em dança, e o que tinha sido meramente uma acrobacia e um tipo de truque de circo, tornou-se meio de expressão artística, dramática, bem como uma proeza técnica.
Marie Taglioni
Antes de considerarmos o que Taglioni fez, e como fez, vamos procurar saber o porquê dela ter feito isso. O ano de 1830 foi o coração da era Romântica. Os artistas e poetas desta era – Keats, Byron, Shelly e Chopin – estavam sempre preocupados com a beleza, a paixão, o natural e o sobrenatural, o poder do amor.
Os grandes ballets românticos desta época eram quase sempre apaixonados mas trágicos no encontro entre um mortal e uma mulher sobrenatural. As personagens das bailarinas eram normalmente habitantes do mundo sobrenatural, como as Sylphides em Les Sylphides e as Willis em Giselle. A mulher sobrenatural é o símbolo da beleza, natureza, amor e imortalidade procurada pelos artistas. A bailarina está sempre representada como uma mulher que não está restrita à Terra, que de tão delicada seria capaz de se equilibrar em uma flor. Taglioni até teve uma peça no cenário que parecia uma flor, forte o suficiente para suportar seu peso e para que ela pudesse criar essa ilusão.
No seu longo tutu branco, completamente simples, se comparado com o ornamentado vestuário do século anterior, ela conseguia passar toda a pureza e virtude feminina. Quando subia nas pontas alcançava uma leveza etérea e uma graça de outro mundo. Dançar com pontas não foi apenas mais um feito, como o primeiro entrechat quatre. Foi um meio de realçar o drama através da expansão do papel feminino.
Na era Romãntica as bailarinas tinham um alinhamento diferente do que conhecemos hoje: eram menos alongadas, a pélvis era mais inclinada para trás e o tronco mais para a frente. Para além do trabalho de pontas, começaram a incluir as pirouettes simples e os piqués.
Taglioni calçava sapatilhas de cetim leve que se ajustavam como luvas. Elas tinham sola de couro e cerziduras nas laterais e em baixo, não na ponta.
As sapatilha de pontas, como nós as conhecemos, evoluíram muito até os dias de hoje.
No final do século XIX as bailarinas viram novas mudanças. Na Rússia, em São Petersburgo, Marius Petipa criou o que viriam a ser chamados os bailados Clássicos: Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, La Bayadère, Dom Quixote e vários outros. Neste momento existiam duas principais – e rivais – escolas de ballet na Europa: a Escola francesa, trazida para a Rússia por Petipa, e a Escola Italiana na qual Enrico Cechetti é um famoso exemplo. Quando duas das maiores bailarinas da escola italiana, Virginia Zucchi e Pierina Legnani, foram a São Petersburgo, a visita causou um profundo efeito na história do ballet.
Enquanto a escola francesa enfatizava o refinamento, a escola italiana era mais atlética, os bailarinos tinham grande desenvolvimento da musculatura das pernas e coxas. A escola italiana pretendeu usar a técnica até o limite, visando alcançar o deslumbramento com o virtuosismo dos seus bailarinos. Os italianos tinham uma arma secreta, um segredo de tradição guardado, para executar múltiplas pirouettes: o foco. Além disso tinham melhores sapatilhas.
Pierina Legnani
Os italianos contribuíram para outra mudança: o encurtamento da saia, que mais tarde evoluiu para o tutu "prato". Virginia Zucchi era uma brilhante e belíssima bailarina. Quando ela se recusou a dançar com uma roupa que, em suas palavras, tinha sido feita para sua avó, ela desconsiderou o rígido regulamento do Teatro Imperial e o mundo do ballet apreciou outro escândalo.
Petipa, como coreógrafo, fez grande uso deste novo “equipamento” para os pés. Fez múltiplas pirouettes nas pontas, sustentações nos posés e equilíbrios, promenades e saltos nas pontas. Eram passos obrigatórios para as bailarinas. Um legítimo Grand Pas de Petipa exige todos esses passos, além de outros.
Com o passar do tempo, exigia-se que a bailarina fizesse mais nas pontas porque ela podia fazer mais. Quanto mais a coreografia exigia da bailarina, mais ela tinha que exigir da sua sapatilha. A palmilha tornou-se mais dura, as caixas cada vez mais reforçadas e a plataforma ficou mais larga.
Agora, no século XXI, a bailarina tem que ser extremamente versátil. Ela precisa de dominar o trabalho de pontas dos Grand Pas de Petipa mas também a enorme variedade de desafios coreográficos que acumulou desde então. A coreografia pode pedir uma menor verticalidade, ou subir nas pontas em diferentes ângulos. Pode incluir infinitos e expressivos bourrés, como na Morte do Cisne de Fokine, ou suaves e viajados relevés em arabesque, como em Les Sylphides. Pode exigir palmilhas quebradas, bons arcos de pé, como nos trabalhos de Forsythe. Ou ainda, exigir extrema agilidade, leveza e flexibilidade, passando de uma ponta para outra, como nos ballets de Balanchine.
Approximate Sonata de William Forsythe
Seria impossível dançar ballets do século XX com sapatilhas do século XIX, e o oposto também é difícil.
Por volta de 1800, na Dinamarca, Bournonville coreografou para bailarinas que calçavam sapatilhas muito suaves. As suas coreografias exigiam uma grande quantidade de vívidos saltos e brilhante trabalho de pontas, mas não tantos equilibrios e múltiplas piruetas nas pontas como no estilo de Petipa. Quando muito mais tarde o Royal Danish Ballet decidiu colocar algumas das pirouettes e equilíbrios nas pontas ao invés de na meia-ponta, as bailarinas tiveram um enorme problema: como conseguir uma sapatilha suave o bastante para os saltos, mas suficientemente forte para os equilíbrios e pirouettes? Algumas resolveram o problema usando uma sapatilha suave em um pé e uma forte no outro. Elas saltavam com o lado suave e faziam as pirouettes e equilibrios com o lado forte.
Para as bailarinas de hoje o trabalho de pontas está totalmente integrado com a técnica de pontas. Até coreógrafos de jazz e moderno exigem que as mulheres usem pontas, embora os passos tenham uma linguagem diferente. As sapatilhas necessárias para tais coreografias precisam de ser extremamente flexíveis e receptivas além de, simultaneamente, terem bom suporte e durabilidade.
Mas o problema é este, a maioria das sapatilhas de pontas é feita do mesmo material que foi usado nas sapatilhas de Pavlova. Embora as sapatilhas tenham evoluído, ficando mais duras e com uma caixa maior, os seus materiais básicos de construção ainda são antiquados: couro, serrapilheira, papel, cola e pequenos pregos.
Isso cria um grande problema para as bailarinas de hoje. Uma sapatilha de ponta nova é excessivamente dura porque a palmilha e a caixa são excessivamente fortes. Uma vez "quebrada", permitindo que a articulação do pé realiza facilmente os saltos e a subida para a meia-ponta, dura pouquíssimo tempo. É mais doloroso do que precisa ser e nada é feito para minimizar o trauma ao dançar em superfícies duras. Companhias sem fins lucrativos e os próprios bailarinos não podem pagar por sapatilhas não duráveis. Esse problema não pode ser solucionado com materiais e métodos de produção medievais.
Além disso, as bailarinas sofrem danos nos tornozelos e pés, o que não acontece aos bailarinos e bailarinas de moderno; esses danos são claramente o resultado do trabalho realizado nas pontas. A maioria dos teatros do mundo não foi construído para dança, mas para ópera ou drama. Muito poucos possuem chão de madeira com caixa de ar. Em vez disso eles frequentemente têm a madeira colocada diretamente no cimento. Saltar em tais palcos é doloroso e traumático, além de poder ser barulhento também.
Tradicionalmente os materiais usados pelos sapateiros precisam de ser espessos e duros, para proporcionar um bom suporte, mas o barulho alto das sapatilhas enfraquece a ilusão de graça sem esforço, algo que a bailarina sempre almeja. Quando uma bailarina interpreta um grande papel, ela está normalmente a representar uma figura sobrenatural. Sapatilhas barulhentas fazem com que a bailarina pareça pesada, enfraquecendo a apresentação, tanto técnica como dramaticamente.
Por que demorou tanto tempo para que os materiais modernos fossem usados nas sapatilhas de pontas? Porque o ballet é uma arte e seu lado “desportivo” fica omitido. A bailarina precisa de esconder os seus esforços debaixo de um sorriso sereno e radiante. A bailarina faz tudo parecer fácil.
Polina Semionova em Giselle
É certo que a introdução de sapatilhas mais duras tornou possível novas realizações técnicas, ainda não conhecidas, e as realizações adicionais eram o resultado de um calçado realçado por bailarinas supremamente talentosas. As melhorias no calçado aperfeiçoaram a arte. As sapatilhas de ponta e técnica de ponta evoluíram juntas durante os últimos séculos e não existe nenhuma razão para o progresso parar.
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